Cecília Meireles | Trechos de livros ♡
Compensação
Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente,mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações...
(...) Hoje eu quereria estar no deserto amarelo,
(...) onde só reina o vento grandioso que leva tudo, que não precisa nem de água, nem de areia, nem de flor, nem de pedra, nem de gente.
O vento solitário que vai para longe de mãos vazias. Hoje eu queria ser esse vento.
Em Escolha o seu sonho
Escolha o seu sonho (conto)
Devíamos poder preparar os nossos sonhos como os artistas, as suas composições. Com a matéria sutil da noite e da nossa alma, devíamos poder construir essas pequenas obras-primas incomunicáveis, que, ainda menos que a rosa, duram apenas o instante em que vão sendo sonhadas, e logo se apagam sem outro vestígio que a nossa memória.
(...) Ah!... - (que gostaria você de sonhar esta noite?)
Chuva com Lembranças
COMEÇAM a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam, e continuam a pousar, às tontas, de jasmim em jasmim. As pedras estão muito quentes, e cada gôta que cai logo se evapora. Os meninos olham para o céu cinzento, estendem a mão
— e vão tratar de outra coisa. (Como desejariam pular em poças dágua!
— Mas a chuva não vem…)
Nas terras sêcas, tanta gente, a esta hora, estará procurando também no céu um sinal de chuva!
E, nas terras inundadas, quanta gente a suspirar por um raio de sol!
Penso em chuvas de outrora: chuvas matinais, que molham cabelos soltos, que despencam as flôres das cêrcas, entram pelos cadernos escolares e vão apagar a caprichosa caligrafia dos exercícios.
(...) Por enquanto, caem apenas algumas gôtas daqui e dali. Nem as borboletas ainda percebem. Os meninos esperam em vão pelas poças dágua onde pulariam contentes.
Tudo é apenas calor e céu cinzento, um céu de pedra onde os sábios e avisados tantas coisas liam outrora.
Em Escolha o seu sonho
ACEITAÇÃO
Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras:
também vou morrer de cantar.
FIM
— Mas, embora nunca te quebres,
terás sempre os olhos mais tristes
ORFANDADE
A MENINA de preto ficou morando atrás do tempo, sentada no banco,
debaixo da árvore, recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.
Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,
(...) Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.
O olhar caíu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,
escutando na terra aquele dia que não dorme com as três palavras que ficaram por alí.
ALVA
Caminhei tantos caminhos, tanto tempo e não sabia como era fácil a morte
(...) Desenho, apenas, do tempo, cada dia mais profundo, roteiro do pensamento,
saüdade das esperanças quando se acabar o mundo...
TERRA
Fui mudando minha angústia numa fôrça heróica de asa.
(...) Deusa dos olhos volúveis, rôsto de espêlho tão frágil, coração de tempo fundo,
— por dentro das tuas máscaras, meus olhos, sérios e lúcidos, viram a beleza amarga.
E êsse foi o meu estudo para o ofício de ter alma; para entender os soluços, depois que a vida se cala.
RIMANCE
e não sei com é que suporte tanta solidão sem pavor.
DESCRIÇÃO
Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.
FADIGA
ESTOU tão cansada, tão cansada, estou tão cansada!
Que fiz eu? Estive embalando, noite e dia, um coração que não dormia.
(...) «Deixa a morte... Não chores... dorme!» Noite e dia eu cantava assim.
Mas o coração não falava: chorava baixinho, chorava, mesmo como dentro de mim.
Era um coração de incertezas, feito para não ser feliz;
querendo sempre mais que a vida — sem termo, limite, medida,
com poucas vezes se quis.
O tempo era ríspido e amargo.
Vinha um negro vento do mar.
Tudo gritava, noite e dia,
— e nunca ninguém ouviria aquele coração chorar.
Uma noite, dentro da sombra, dentro do chôro,
(...) E achei que o vento era mais forte, que o frio causava aflição;
quis cantar, mas não foi preciso.
E o ar estava muito indeciso para dar vida a uma canção.
A sorte virara no tempo como um navio sôbre o mar.
O chôro parou pela treva.
E agora não sei quem me leva daqui para qualquer lugar,
onde eu não escute mais nada, onde eu não saiba de ninguém,
onde deite a minha fadiga e onde murmure uma cantiga para ver si durmo, também.
MEDIDA DA SIGNIFICAÇÃO
IV
A água da minha memória devora todos os reflexos.
Desfizeram-se, por isso, tôdas as minhas presenças e sempre se continuarão a desfazer.
É inútil o meu esforço de conservar-me; todos os dias sou meu completo desmoronamento: e assisto à decadência de tudo,
(...) Voz obstinada que estás ao longe chamando-me, conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência. Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho, para veres o que dêles resta depois que chegarem a êstes ermos domínios onde figuras e horas se decompõem.
Não precisaremos falar mais nem sentir: seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.
E saberás distinguir as coisas que perecem desoladas, olhando para esta água interminável e muda, que não floriu, que não palpitou, que não produziu, de tanto ser puramente imortal...
A MENINA ENFÊRMA
A MENINA enfêrma tem no seu quarto formas inúmeras
que inventam espantos para seus olhos sem ilusão.
(...) Um dia, ela descobriu sòzinha que era duas!
a que sofre depressa, no ritmo intenso e atroz da noite
e a que olha o sofrimento do alto do sono, do alto de tudo,
balançada num céu de estrêlas invisíveis,
sem contato nenhum com o chão.
MISÉRIA
HOJE é tarde para os desejos, e nem me interessa mais nada...
Cheguei muito depois do tempo.
(...) O suspiro que em mim resvala bem pode ser,
a cada instante, o derradeiro.
Morrer é uma coisa tão fácil que tôdas as manhãs
me admiro de ter o sono conservado fidelidade ao meu suspiro.
(...) E em meus ouvidos indiferentes, alheios a qualquer vontade,
que rôstos vão reconhecendo os passeios da eternidade?
(Vejo a lágrima que escorre por cima da minha pena.
Ai! a pergunta é sempre enorme, e a resposta, tão pequena...)
Em viagem vaga musica
Levantei os olhos para ver quem falara.
Mas apenas ouvi as vozes combaterem.
E vi que era no Céu e na Terra.
E disseram-me: Solombra.
Há mil rostos na terra: e agora não consigo
Esperamos assim. Por esperança, a espera
vai-se tornando sonho afável; mas descubro
no olhar que te procura uma névoa de orvalho.
Qualquer palavra que te diga é sem sentido.
Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço.
Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo.
(...) E à tentação de tantas máscaras felizes
se opõe meu leal, nítido sangue.
Para pensar em ti todas as horas fogem
Quero a insônia, a vigília, uma clarividência
deste instante que habito - ai, meu domínio triste!,
ilha onde eu mesma nada sei fazer por mim.
(...) E esta ausência em minha boca:
pois bem sei que falar é o mesmo que morrer.
Da vida à Vida, suspensas fugas.
eu é que sou translúcida morta.
Nuvens dos olhos meus
Tudo é no espaço - desprendido de lugares.
Tudo é no tempo - separado de ponteiros.
E a bôca é apenas instrumento de segredos.
As palavras estão com seus pulsos imóveis
As palavras estão com seus pulsos imóveis.
Caminharia a morte – e sempre o mesmo peso
e a mesma sombra fechariam meus pedidos.
(...) Nada somos. No entanto, há uma força que prende
o instante da minha alma aos instantes da terra,
como se os mundos dependessem desse encontro
desses prelúdios sobressaltados.
Palavras gastas de Morte e Amor.
No mar da vida ser coral de pensamento.
Só vejo o que não vejo e que não sei se existe
Eu pequena pedra pensante, apenas fragmento.
"Agora és livre, se ainda recordas."
Amarga morte: suposta vida...
a construir o instante em que direi teu nome!
Pálido mundo só de memória.
Longe passamos. Todos sozinhos.
Em Solombra
Apontamento
Subo por essas horas
solitária e sincera,
e encontro, exausta e pura,
minha alma que me espera.
Cavalgavam uns cavalos
Sonho com uns cavalos cavalgando.
Cavalgavam uns cavalos,
E não se podia saber a onde se iria chegar.
Era preciso cavalgar.
Mas era preciso cavalgar!
Em Sonhos
Sobre as muralhas do mar
Sobre as muralhas do mar, entre areias,
espumas, colunas,
o que passa e o que perdura.
Conversaremos.
Conversaremos de um tempo
que imaginamos.
Que não houve.
Em Poemas de Viagens
Na minha alegria, corre um mar de lágrimas
Liberdade de voar num horizonte qualquer,
liberdade de pousar onde o coração quiser.
Escrever é uma maldição.
Uma maldição que salva.
Mar Absoluto
Foi desde sempre o mar,
E multidões passadas me empurravam como o barco esquecido.
Agora recordo que falavam da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros, de sereias dadas à costa.
Queremos a sua solidão robusta, uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
O mar é só mar, desprovido de apegos, matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.
E recordo minha herança de cordas e âncoras, e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim uma face espantosa.
Contemplação
Nada sei. Contemplo.
Que acontecimentos serão produzidos em mim e em ti?
Não há resposta. Sabem-se dos nascimentos quando já foram sofridos.
Tão pouco somos, - e tanto causamos, com tão longos ecos!
Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos.
Quero um dia para chorar
Quero um dia para chorar.
Dia de desprender-me dessa
aventura mal-entendida
sobre os espelhos sem saída
em que jaz minha face impressa.
Chorar sem protesto. Chorar.
Os Presentes dos Mortos
Os mortos sobem as escadas,
sorrindo com seus claros dentes.
Alegrias que nunca tiveram
quando eram vivos e presentes,
felicidades que apenas sonharam
e foram lágrimas somente.
Os mortos sobem as escadas:
inesperados visitantes
vindos dos reinos sem fronteiras
às nossas casas, dessemelhantes.
Ai, bem se vê que não estão vendo
que um vivo é um morto mais distante!
FUTURO
É preciso que exista, enfim, uma hora clara, depois que os corpos se resignam
sobre as pedras como máscaras metidas no chão.
Por entre as raízes, talvez se veja, de olhos fechados,
como nunca se pode ver, em pleno mundo,
cegos que andamos de iluminação.
Perguntareis: “Mas era aquilo, o teu silêncio?” Perguntareis:
“Mas era assim, teu coração?”
Ah, seremos apenas imagens inúteis, deitadas no barro,
do mesmo modo solitárias, silenciosas,
com a cabeça encostada à sua própria recordação.
. Aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar
e a voltar sempre inteira.
em Mar Absoluto
antarão os galos, quando morrermos,
e uma brisa leve, de mãos delicadas,
tocará nas franjas, nas sêdas mortuárias.
E o sono da noite irá transpirando sobre as claras vidraças.
Que frescura espessa em nossos cabelos,
livres como os campos pela madrugada !
Na névoa da aurora, a última estrela subirá pálida..
Todas as palavras são inúteis,
desde que se olhe para o céu.
De tanto querer ser boa,
misturei o céu com a terra,
e por uma coisa à-toa
levei meus anjos à guerra.
Talvez o mundo nascesse certo;
mas depois ficou errado.
Nem longe nem perto
se encontra o culpado!
A Alegria
No fundo de um poço
deitei a Alegria,
dizendo-lhe: “Espera
que volto algum dia.
Chorou por não ter sido outro.
E só por isso que se chora.
Em Retrato Natural
Ah, se recuperássemos tudo o que perdemos!
Até quando porém, amaremos as mesmas coisas?
Vai mudando o nosso coração de instante a instante.
O passado tem suas portas e suas chaves.
Não mais abrir essas casas antigas!
Não mais fitar esses vultos que procurávamos.
Não mais pronunciar esses nomes.
Mas também a saudade, até quando,
até quando a poderemos sentir?
a dor:
da mais simples, que á a vida,
á mais em remédio, que é a morte
Fita bem meu rosto,
guarda os olhos pálidos
com rios antigos
por onde viajaste.
Lembra-te da minha
sombra humana, diáfana,
-pode ser que um dia
todos nós passemos
pela Eternidade.
Chuva nas nuvens,
flores nas arvores, lagrimas
em nós. O tempo inteiro para as lagrimas.
Por isso estamos tão extenuados: todos
os tempos foram de chorar
Agora, não e mais como outrora.
Não, agora tudo e diferente.
De uma tristeza diferente.
O outono vai chegar... Neva a nevoa do outono...
E eu sofro a angustia irremediável da paisagem...
Aprenda a ficar sozinho e gostar disso.
Não ha nada mais libertador e poderoso
do que aprender a gostar da sua própria companhia.
Adestrei-me com o vento e minha festa e tempestade.
CANÇÃO
Se de novo passares,
não procures por mim.
Preservemos o fim
dos saudosos olhares.
Eras um rosto
Na noite larga
De altas insônias
Iluminada.
Serás um dia
Vago retrato
De quem se diga:
“o antepassado”
Dize:
O vento do meu espírito
Soprou sobre a vida.
E tudo que era efêmero
Se desfez.
E ficaste só tu, que és eterno...
X
Os teus braços são muito curtos.
E é larguíssimo este caminho.
Com eles não poderás impedir
Que passem, os que terão de passar,
Nem que fiques de pé,
Na mais alta montanha,
Com os teus braços em cruz.
Em Cânticos
49
Nesta vida é mesmo assim,
e assim mesmo que convém;
ninguém acredita em mim
nem eu tão pouco em ninguém...
118
Houve guerras. Fui vencê-las.
Cheguei de mãos mutiladas.
Tudo culpa das estrelas....
Sempre houve estrelas culpadas.
128
Quem diz mágoa diz espinho,
quem diz espinho diz rosa.
Sempre há feras no caminho.
Quem diz mágoa diz espinho.
Quem diz espinho diz mágoa
por motivos de carinho,
trago os olhos rasos d’ água.
Em Morena Pena de amor
Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida.
E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.
Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais.
Em O estudante Empírico
Todos os fins são bons e justos ...
alma desfeita, corpo exausto, olho
as coisas de olhos augustos ...
Cabelo em sombra, olhar ausente,
passa como a bruma que vai na aragem presa...
Silenciosa. Imprecisa. Etérea taça em que adormece luar...
Delicadeza... Não se diz... Não se exprime... Não se traça...
Fluido... Poesia... Névoa... Flor... Beleza...
Deixei passar a ronda lenta de
muitas luas, e a minha tristeza
não diminuiu!
Eu sei que tudo é inútil...
Eu sei que tudo é impossível...
Eu sei que tudo é vão, tudo,
tudo o que eu sonho e quero...
Em Nunca mais... E poema dos poemas
A moura e o vento
E o vento voava dizendo:
“ É meu tudo o que se escreve...
As palavras são de vento...
Só que de um vento bem leve..
Canção
Para quem pinta teus olhos?
De cílios tão delicados?
Homem nenhum neste mundo,
adolescente, vale os teus
olhos pintados.
Canção de Outono
Vim para
amar neste mundo, e até do
amor me perdi.
IV
Não descerias em mim,
porque a minha torrente
desmancharia o teu frágil momento
no rápido trânsito.
Papéis
II
Inclino-me docemente para impossíveis janelas
Não creio nos meus olhos.
Não creio na paisagem.
Não creio em nada, do que se tem sentido.
Creio nos espaços em branco.
Nas estrelas de profecia. Entre
incansável tempo múltiplo e o
tempo incansável e único.
Que o coração não seja como um frio sepulcro,
mas ardente e sensível e cheio de densas lágrimas.
Que, no entanto o lábio não trema nem se entreabra,
e os olhos continuem serenos, translúcidos, sem qualquer
[ esquecimento
Que seja de qualquer espécie, a dor:
da mais simples, que á a vida, á mais
sem remédio, que é a morte.
— cedo ou tarde. Isto não são palavras de página efêmera:
isto é uma velha inscrição na alma,
— onde nada se apaga nem deforma.
Desenho sem título
Por que o caminho era tão longo, e
os meus pés tão pequenos...?
(Já não se morre de velhice nem de acidente
nem de doença, mas, Senhor, só de indiferença.)
Discurso aos infiéis
Por que chorar de saudade, se me resta o
longo mar sonoro e vário,
a flor perfeita, a estrela certa,
É melhor não ficar jamais com quem nos ama.
O amor é um compromisso de grandeza, o
amor é uma vigília incansável e aparentemente
vã.
Tudo isto é um tempo de rápidas inconstâncias
Tudo isto é um tempo de rápidas inconstâncias,
cheio de lágrimas que nem chegam a ser
choradas, porque elas mesma se extinguem na
vertigem do sofrimento.
Apenas deixam sua salgada lembrança na alma depositada.
PLANTAREMOS ESTES ARBUSTOS
Plantaremos estes arbustos
que darão flor apenas daqui a
três anos.
Plantaremos estas árvores que
darão fruto um dia, mas só
depois de dez anos.
Não plantaremos jardins de amor,
porque imediatamente abrem
tristeza e saudade.
Não plantaremos lembranças porque
estão desde já e para sempre
carregadas de lágrimas.
Epitáfio
Só permaneço pelo que me falta...
Com poucas palavras
A morte é um relâmpago apenas.
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